Saiba ao pormenor o que é a cogeração e quais as tecnologias envolvidas na sua produção. Explicam-lhe Rui Castro, do Instituto Superior Técnico (IST), e João Crispim, das Redes Energéticas Nacionais (REN).

O que é a cogeração? Trata-se da geração simultânea de múltiplas formas de energia útil, nos casos mais comuns, energia eléctrica e térmica, num sistema integrado, a partir de uma única fonte primária. A fonte primária pode ser um combustível fóssil – gás natural ou gasóleo, ou mesmo um combustível renovável – biomassa ou biogás, por exemplo. Em qualquer um dos casos, o processo de cogeração configura uma forma de utilização mais eficiente da energia, pelo que é muitas vezes associada às energias renováveis, encaradas de forma abrangente.
COGERAÇÃO E TRIGERAÇÃO
Na cogeração mais comum há, como referido anteriormente, uma geração simultânea de energia eléctrica e térmica. A utilização da electricidade é evidente; já o destino a dar ao calor obtido, resultante da impossibilidade de converter totalmente em electricidade a energia contida numa fonte térmica (2.ª Lei da Termodinâmica), pode ser menos óbvio, dada a dificuldade de transmissão do calor à distância. As aplicações típicas deste tipo de sistemas são industriais, com necessidades de calor no âmbito do processo industrial (químicas, cerâmica, papel) e edifícios (hospitais, hotéis, centros comerciais) que possuem necessidades de calor para aquecimento.
Figura 1 ∙ Esquema de princípio do aproveitamento de calor num sistema de cogeração.
A Figura 1 mostra um esquema típico estilizado de aproveitamento do calor num sistema de cogeração, equipado com um motor. Nestes sistemas existe uma máquina térmica, que no caso é um motor de combustão interna, mas também pode ser uma turbina, a gás ou a vapor, acoplado a um gerador para produção de energia eléctrica de forma convencional. O calor que não é possível converter em electricidade, em vez de ser desperdiçado, é aproveitado, de forma útil, usando permutadores de calor intercalados nos circuitos de refrigeração e dos gases de exaustão do motor.
Naturalmente, um sistema de cogeração é mais eficiente do que o sistema tradicional alternativo para a obtenção do mesmo serviço composto de electricidade e calor, onde seriam necessários um sistema gerador e uma caldeira. A Figura 2 ilustra o acréscimo no rendimento global do processo.
Pode observar-se que, para obtenção do mesmo produto final, neste caso 35 unidades de energia eléctrica e 55 unidades de energia térmica útil, os sistemas de cogeração requerem apenas cerca de 55% da energia primária necessária num sistema tradicional de produção separada de calor e electricidade. Naturalmente que estes números se referem a um aproveitamento optimizado do calor disponível no sistema de cogeração e tal nem sempre é possível, dado que seria necessário dispor de uma aplicação útil capaz de usar tão grande parte do calor disponível. Como consequência deste ganho de eficiência, advêm benefícios ambientais significativos, decorrentes da diminuição das emissões poluentes por unidade de energia útil produzida.
Figura 2 ∙ Comparação dos rendimentos de um sistema de cogeração e de um sistema convencional de produção separada de electricidade e calor.
No sector terciário dos países com climas temperados, as necessidades de calor são mais prementes nos meses de Inverno, para aquecimento. Contudo, nos meses de Verão, o calor também pode ser aproveitado para produção de frio, usando um equipamento dedicado de conversão de calor em frio - um chiller de absorção. Os sistemas com estas características são designados sistemas de trigeração.
Na definição de cogeração incluem-se também as centrais de ciclo combinado, habitualmente utilizadas em produção centralizada. Neste esquema recorre-se a turbinas a gás, conjugadas com turbinas a vapor, onde se utiliza o vapor gerado pelo aproveitamento térmico dos gases de escape das turbinas a gás para produção adicional de energia eléctrica. O rendimento global destes sistemas ronda os 55%, sendo significativamente superior aos cerca de 35%, característicos das centrais térmicas convencionais. Em Portugal, depois da opção pelo gás natural, foram instaladas várias centrais térmicas funcionando em ciclo combinado tendo em vista este aproveitamento.
SITUAÇÃO EM PORTUGAL
Sendo a energia produzida em regime de cogeração remunerada em regime de “Produção em Regime Especial” (PRE), e beneficiando, assim, de tarifas subsidiadas para compensar o investimento de aplicação da tecnologia, é expectável o incremento na energia produzida por este meio. De facto, desde 1990 tem-se verificado um crescimento exponencial de venda à rede de energia em regime de cogeração, tendo como fonte primária principal o gás natural, o que não é de estranhar dados os avanços tecnológicos em turbinas deste género. O aumento da cogeração em centrais de biomassa é, também, assinalável (Figura 3).
Figura 3 ∙ Produção e venda à rede de energia em regime de cogeração.
Em 2009, os cogeradores abasteceram cerca de 12% do consumo de energia eléctrica (registe-se, para comparação, que a percentagem referente ao eólico se cifrou em 15%). Em termos de potência de ligação à rede pública, no final de 2009, encontravam-se ligados cerca de 1600 MW em unidades de cogeração (aproximadamente 10% do total da potência eléctrica instalada em Portugal).
TECNOLOGIA DOS SISTEMAS DE COGERAÇÃO
As soluções tecnológicas que actualmente equipam as centrais de cogeração podem ser divididas em dois grandes grupos, de acordo com o grau de maturidade, desenvolvimento tecnológico e disseminação comercial em que se encontram.
TECNOLOGIAS CONVENCIONAIS
- Turbinas de gás;
- Motores de combustão interna (explosão e de ignição por compressão);
- Turbinas de vapor de contrapressão.
TECNOLOGIAS EMERGENTES
- Microturbinas;
- Pilhas de combustível.
TECNOLOGIAS CONVENCIONAIS
Turbina de gás
As turbinas de gás operam em ciclo aberto. O ar atmosférico é conduzido ao compressor, onde a temperatura e a pressão são elevadas. Na câmara de combustão, o ar entra em contacto com o combustível que está a ser queimado a uma pressão constante. Os gases resultantes desta mistura, a alta temperatura, entram na turbina, onde são expandidos, produzindo trabalho. O trabalho útil é a diferença entre o trabalho entregue pela turbina e o trabalho entregue ao compressor. Os gases exaustos são rejeitados, sendo possível aproveitar, de forma útil, o calor associado.
A temperatura dos gases da exaustão é relativamente elevada – da ordem de 400 a 500º C nas turbinas das pequenas unidades industriais, podendo mesmo atingir cerca de 600º C nas turbinas de maior dimensão. A instalação de um recuperador de calor permite aproveitar este calor para produzir vapor ou água quente.
Os sistemas equipados com turbinas a gás operam de acordo com o ciclo de Brayton, sendo uma importante característica deste ciclo o peso considerável que representa o trabalho que é necessário fornecer ao compressor, comparado com o trabalho fornecido pela turbina: o compressor pode requerer cerca de 40 a 80% do trabalho à saída da turbina.
Motores de combustão interna
Existem dois tipos de motores de combustão interna: de explosão (ignição por faísca), que usam normalmente o gás natural como combustível, embora também possam recorrer ao propano ou à gasolina, e de ignição por compressão, que operam com gasóleo (diesel).
Os motores de explosão são os mais utilizados em instalações de cogeração, uma vez que possuem várias fontes de recuperação de calor: gases da exaustão e circuitos de refrigeração do óleo e do motor. A câmara de combustão contém um cilindro, duas válvulas (uma de admissão e outra de escape) e uma vela de ignição. O pistão que se move no interior do cilindro é acoplado à biela que se articula com a cambota. A cambota transforma o movimento de vaivém num movimento rotativo. Este tipo de motor designa-se por motor a “quatro tempos”, dado que o seu funcionamento se faz numa sequência de quatro etapas.
O desenvolvimento do motor diesel baseou-se na eliminação da necessidade de um circuito eléctrico para iniciar a combustão: o combustível – o óleo diesel ou gasóleo – é queimado por acção do calor libertado quando o ar é comprimido com uma taxa muito elevada.
O ciclo Otto descreve o funcionamento do motor de explosão; o ciclo Diesel está associado à representação termodinâmica do funcionamento do motor de ignição por compressão. A taxa de compressão no ciclo Diesel é muito superior à do ciclo Otto, porque no primeiro, apenas o ar é comprimido, enquanto que, no segundo, é a mistura ar-combustível que é comprimida, o que é especialmente problemático na fase de explosão; daí a necessidade de taxas de compressão sensivelmente mais baixas.
Turbinas de vapor
As turbinas a vapor são elementos constituintes bem conhecidos do equipamento das centrais térmicas convencionais, incluindo as de ciclo combinado (a gás natural).
O seu funcionamento é descrito pelo ciclo de Rankine. Na caldeira, a água é convertida em vapor saturado de alta pressão a uma temperatura superior à temperatura de saturação (sobreaquecimento). Este vapor é expandido numa turbina de vários andares (é frequente pelo menos um reaquecimento intermédio), sendo finalmente rejeitado, a baixa pressão, para um condensador de vácuo, onde se processa a condensação do vapor. Finalmente, o condensado é bombeado de novo para a caldeira, eventualmente com um pré-aquecimento, designado regeneração, para um re-início do ciclo.
Nos sistemas de cogeração não deve ser usado o tipo de turbina que acabou de se descrever, chamado turbina de condensação, pois este equipamento está dimensionado para optimizar o rendimento da conversão eléctrica. Assim, é mais adequado usar, em sistemas de cogeração, as chamadas turbinas de contrapressão (ou de não-condensação), cujo nome deriva do facto de o vapor ser rejeitado a pressões da ordem de grandeza da pressão atmosférica, superiores portanto ao vácuo do condensador (pressão da ordem das centésimas de bar). A utilização do vapor a uma pressão relativamente elevada prejudica sensivelmente o rendimento eléctrico, mas melhora o rendimento térmico, pois as características do vapor são normalmente mais adequadas aos fins a que se destina.
Nas turbinas de contrapressão, o fluxo de vapor exausto que abandona a turbina é enviado directamente para o processo industrial em condições próximas das que são requeridas.
Um terceiro tipo de turbina, a de extracção, é um misto das duas anteriores: uma parte do vapor é enviado para o processo industrial, a uma pressão intermédia, e o remanescente é condensado no condensador.
TECNOLOGIAS EMERGENTES
Microturbinas
A principal diferença entre as microturbinas e as turbinas a gás já referidas prende-se com a respectiva menor dimensão (30–300 kW, contra os 0,5 a 250 MW das turbinas a gás).
O princípio de operação das microturbinas é o ciclo de Brayton. O compressor comprime ar, o qual é pré-aquecido usando um permutador de calor que recupera o calor dos gases de exaustão da turbina. O ar aquecido é, então, misturado com o combustível na câmara de combustão e os gases quentes resultantes da combustão são expandidos na turbina. O calor remanescente dos gases de exaustão pode ser aproveitado para outros fins úteis.
As microturbinas podem operar com uma grande variedade de combustíveis: principalmente gás natural, mas também combustíveis líquidos como gasolina, querosene e óleo diesel. Sendo a velocidade de rotação do veio muito elevada (da ordem das 50.000 a 60.000 rpm), é necessária uma montagem do tipo rectificador-inversor para injectar energia na rede.
Pilhas de combustível
As pilhas de combustível, ainda em fase de desenvolvimento e aperfeiçoamento, configuram um modo de obtenção de energia eléctrica completamente diferente, tanto das tecnologias convencionais que usam combustíveis fósseis, como das tecnologias que fazem uso de recursos renováveis.
As pilhas de combustível são, de certo modo, semelhantes às conhecidas baterias, no sentido em que ambas geram energia em corrente contínua através de um processo electroquímico, sem combustão nem transformação intermédia em energia mecânica. A principal diferença reside, no entanto, no facto de as baterias converterem a quantidade finita (e muito limitada) de energia química armazenada em energia eléctrica, enquanto as pilhas de combustível podem, em teoria, operar indefinidamente, sendo para tal necessário o fornecimento contínuo de combustível, hidrogénio, que pode ser obtido a partir de um hidrocarboneto, tipicamente o gás natural, enquanto o oxigénio necessário para a reacção é retirado do ar ambiente.
Figura 4 ∙ Princípio de funcionamento de uma pilha de combustível alcalina.
A pilha de combustível mais simples (alcalina) é constituída por dois eléctrodos inertes mergulhados num electrólito alcalino diluído (Figura 4). Os gases – hidrogénio e oxigénio –, cuja reacção dará lugar a uma corrente eléctrica, são introduzidos nos compartimentos do ânodo (+) e do cátodo (–), respectivamente.
No ânodo, o hidrogénio, sob a forma de gás, ioniza-se em contacto com iões hidróxilo OH– (ião móvel do electrólito), libertando electrões e energia e produzindo água. No cátodo, o oxigénio reage com electrões retirados do eléctrodo e com a água contida no electrólito, formando novos iões OH–. Estes encontram-se e movem-se no electrólito.
Para que estas reacções ocorram continuamente, os iões devem ter a possibilidade de passar através do electrólito e deve existir um circuito eléctrico exterior para que os electrões se possam deslocar do ânodo para o cátodo. Os eléctrodos têm aqui uma função dupla: servem de condutores eléctricos e proporcionam as superfícies necessárias para a decomposição inicial das moléculas em espécies atómicas, que antecede a transferência de electrões.
Existem vários tipos de pilha de combustível, de acordo com o electrólito usado, com a natureza das reacções que ocorrem no ânodo e no cátodo e com a temperatura operacional. As pilhas de combustível de média dimensão, que são mais utilizadas na produção de energia eléctrica, são as de carbonato fundido e as de óxido sólido. Estes dois tipos de pilhas são também os mais vantajosos do ponto de vista da cogeração, uma vez que permitem obter vapor a uma pressão média (até 10 bar).
As fontes de calor disponíveis incluem principalmente os produtos da reacção, designadamente a condensação do produto água (que também é necessária no processo) e os circuitos de arrefecimento da pilha.
FUTURO
Embora os exemplos de tecnologia espelhados acima correspondam às tecnologias actualmente implementadas, o espaço para surgimento de outras não está encerrado. A alternativa de utilizar a energia calorífica associada a perdas para reconversão em energia eléctrica é uma delas. Ideias como o termofotovoltaico, tecnologia semelhante ao fotovoltaico, mas “sintonizado” para comprimentos de onda do infravermelho, oferecem novas possibilidades no domínio do aproveitamento energético, permitindo vislumbrar um futuro onde os rendimentos energéticos sejam melhores do que nunca, e as perdas deixem de ser encaradas como tal.
AUTORES: Rui Castro (IST) e João Crispim (REN)
Fonte: revista O Electricista